domingo, 23 de fevereiro de 2014

Conto de verão

A música a embalava pela vida. Embalava mesmo; jogava a menina numa caixa de felicidade momentânea que durava 3 minutos e 27 segundos, contando o fade-out no final.

Descobrira-a nalguma tarde perdida de sua adolescência entre um clique e outro de seu computador. Ao escutar pela primeira vez nem deu muita trela; parecia com coisa qualquer, quase tão trivial quanto os imãs de geladeira de cidades do nordeste que povoavam a geladeira da casa em misterioso diagrama.

Mas o tempo foi generoso com a composição. Por uma daquelas coincidências binárias, o arquivo foi sorteado entre tantos e tantos outros habitantes do computador da menina para compor o seleto grupo de músicas para serem ouvidos no aparelho portátil. Então, quando ela voltava cansada do tempo ruim e da vida feita de estágios e mais esperas, aos poucos foi se afeiçoando ao ritmo compassado e à voz enigmática do cantor que pedia em um desespero triste e melancólico que alguém não lhe levasse o guarda-chuva em meio ao temporal que insistia cair naquele verão.

A música apaixonou seus ouvidos, seduziu de jeito cotidiano, mundano, do tipo sujeito insistente que passava todos os dias defronte a sua casa. Quando percebeu já estava a esperar o momento dela tocar em seu aparelho. Em verdade percebeu-se aguardando todos os dias o momento de ir embora, tchau telefone tocando, tchau relógio ponto, adeus papo de colega que espera o café, anda logo fila do ponto, corre motorista para arrancar o ônibus que lá vem ela e dessa vez está até chovendo vejam só.

Sorriso de satisfação de vidro embaçado pela lotação.

Escutava apenas uma vez. Só uma vez por dia. Tinha medo de gastar o encanto de seus versos, de seus instrumentos tão bem orquestrados, como disco de vinil que pode se riscar e perder as ranhuras.

Um dia escutou um colega dizer enquanto procurava dar algum doce ao tristonho café da firma que a música era a sua preferida. Ela se engasgou com o café, sorriu amarelo, saiu pela porta errada. Foi até o banheiro e olhou para o espelho de canto de olho.

O amor de sua vida a havia traído.

Ele saía com outro, de risinho fácil e bronzeado desbotado.

O caminho de volta naquele dia foi penoso. Quando chegou a vez da música, os versos aos poucos foram ficando sem sentido, quase bobos, vesgos, coisa de chantagista. Enjoava no ônibus lotado. Quem antes chorava poeticamente pelo guarda-chuvas perdido na chuva de verão agora soava apenas como um mimado reclamando de algo que, no fundo, não era importante.

Bateu a porta da geladeira tão forte naquele dia que a praia de Maragogi foi ao chão, perdendo um barquinho feio de gesso.

Tentou por dias a fio esquecer aquilo tudo, deu outras chances várias a seu amor. Mas nada mais adiantava. Algo se quebrara ao dividir com alguém aquilo que lhe era tão especial.

Passou a não escutar outras músicas, esqueceu o aparelho em casa. Por fim, em uma noite recheada de tristeza, retirou o arquivo de sua lista de favoritas.

O tempo passou, novas viagens de ônibus e músicas vieram, foi embalada nos braços por muitos amantes, trocou muitos sorrisos secretos consigo mesma através dos espelhos e janelas.

Até que um dia foi abordada pela música novamente.

Ele chegou, de olhos baixos, entre uma oferta de frango desfiado e um anúncio de limpeza imediata no corredor treze enquanto ela fazia as compras da casa com seus netos.

Ao chegar em casa, pulso acelerado, mandou que eles brincassem lá fora. Do fundo de uma das prateleiras mais esquecidas da casa retirou o mesmo velho aparelho. Levou-o até o sofá, colocou os fones de ouvido e apertou o play.

Nenhum som chegou a seus ouvidos; o aparelho já não funcionava há décadas.

Mesmo assim, trocou um olhar embaçado com a janela.

Lá fora, a criançada brincava na chuva de verão.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

12:00

Puta que o pariu, o despertador não tocou.

Era Assessor do Deputado. O quarto assessor. Suas tarefas da manhã eram chegar com os jornais do dia (ainda de noite) no gabinete, depositá-los na mesa do Deputado e, mais tarde, fazer café para o resto do gabinete que chegava lá pelas oito e meia.

Seu maior feito foi ter recebido um elogio do pai do Excelente Deputado uma vez.

Esse café tá o diacho de bom. Deve ter sido aquela gostosa da Secretária que fez.

O menino sorriu pra ele mesmo lá detrás da pilha empoeirada de memorandos.

Calça, paletó, camisa (já perdendo a goma feita pela mãe há três meses), meia, sapato (será que o cara que engraxa iria estar perto da banca dos jornais hoje?), cabelo penteado.

O laço da gravata estava torto. Esquece, ninguém iria reparar.

Bolsa e corre pra porta. Café? Não pra ele.

Já na fila do ponto de ônibus, lembrou que esqueceu o celular enrolado nas cobertas. Olhou o relógio. Se voltasse, atrasava. Esquece, que tire o dia de folga hoje.

Pouca gente que não fosse passageiro da madrugada iria sobreviver a uma viagem daquelas. A depressão é tanta nas caras de quem pega o primeiro ônibus do dia que qualquer um que não fosse passageiro habitual ficaria com vontade de puxar a saída de emergência e sair rolando no asfalto, num riso nervoso.

O Assessor sorriu da ideia, olhando em volta. Caras fechadas.

Ninguém sorri no ônibus da madrugada.

Como não podia escutar música no celular, encostou a cabeça no vidro, colou os olhos lá fora. Faltava ainda umas duas horas pro amanhecer; tudo dormia, em silêncio. Quando o sol chegasse, a avenida ainda vazia ia ferver debaixo do sol escaldante, carro pra todo lado, gente com cara e pele de asfalto esburacado.

Droga de celular.

Se assustou com a voz delicada ao seu lado. Uma moça, feita de olheiras da noite ainda de hoje dava tapinhas na tela trincada de seu telefone.

Pode ser o chipe.

Olhar meio enviesado. Silêncio.

Já pensou em desligar e ligar de novo?

Não é nada disso. Esse negócio todo é uma droga.

A moça se virou pro lado do corredor e continuou a delicada operação comunicativa que, como assinalou, a partir de agora deveria ser tomada como particular.

Desceu no ponto da banca. Ficava uns quatro antes de onde tinha que descer. Mas era ali o único lugar que vendia jornais ainda de madrugada, porque era a banca que ficava de frente ao Jornal e recebia as edições antes que todo mundo.

Mas por que tenho que comprar o Jornal tão cedo, se o primeiro empregado da repartição só aparece às sete e cinquenta?

Arriscou a pergunta uma vez para o Chefe da Assessoria. Ele nem desviou o olho do computador. Era um homem pequeno, óculos grandes. O brilho da careca já tinha iluminado a carreira de muitos Assessores, diziam.

Menino, se você quer crescer por aqui, o melhor é não fazer perguntas. O Quarto tem que comprar jornal de madrugada, é o que sempre foi feito. E se o Deputado resolve madrugar e aparecer por aqui antes? Vai ficar sem jornal?

O Excelente nunca madrugava. Nunca madrugou. Só se fosse com a Secretária, fazendo hora extra.

Pegou um de cada exemplar. Verificou as datas, pra ver se não tinha nenhum trocado por engano.

Engano total; todos eram do dia anterior.

Não tem a de hoje?

O Senhor Gordo nunca desgrudava do radinho. Ficava lá atrás do balcão, só a peruca aparecendo. Tinha todo tipo de espelhos lá detrás, ouvido no rádio e olho atento nos movimentos das mãos sobre as edições. Pedimos o favor de não folhear as revistas, diziam as placas.

Silêncio.

Se aproximou do balcão.

Oi.

Levantou o jornal já meio murcho do dia anterior.

Não tem o de hoje?

Olho ensebado.

Não chegou ainda.

Silêncio e bolero para embalar a madrugada que já se ia.

Suspirou.

Saiu e olhou a garagem do jornal, logo em frente. Pouca luz, não parecia estar produzindo nada. Em compensação, as luzes das redações, logo acima, todas estavam acesas. Aqui e ali, vultos andando. Um vulto olhava pela janela para a Banda do Gordo.

O Vulto e o Assessor trocaram um olhar de longe, os dois com as mãos nos bolsos.

Seguiu andando. Talvez na outra banquinha, debaixo da repartição.

Chegou quando o dia raiava, os passarinhos já assanhados nas árvores da Mega-Praça que ficava defronte.

A banca só abria sete e quarenta. Tiro arriscado, mas fazer o que.

Subiu para a Repartição. O porteiro cochilante abriu a porta para ele.

Bom dia, Branca-de-Neve.

O senhor fez um sinal de cabeça. Meio sorriso de meia dentadura. A TV preto e branco de cinco polegadas estava fora do ar, anunciando serviço de manutenção no canal.

A repartição vazia. Ar condicionado a nove graus. Ar seco, rarefeito do Himalaia do vigésimo nono andar.

Entrou pela porta de serviço, que dava na cozinha. Lavou as mãos e o rosto da andança, ajeitou o cabelo e o paletó. Na cozinha, derramava o pó pro café quando ouviu os alarmes.

Muitos alarmes, pequenas ambulâncias saudando o dia que raiava.

Saiu até os escritórios. Aqui e ali e acolá, todos os computadores gritavam. O relógio digital da parede também fazia parte do coro, por mais que ele nunca pensou na vida que o relógio digital da parede tivesse algum som escondido nas suas entranhas de quartzo.

As telas ligadas. Todas azuis. Uma só mensagem.

12:00.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O silêncio da madrugada

Quando criança, conversavam por horas. Ele doava seu tempo, seus ouvidos, fala e correrias só para o menino. Dentre os amigos que o outro tinha na rua, na família ou nos primeiros anos da escola, ele poderia ser considerado o melhor.

Eram inseparáveis.

Da amizade que ali nasceu ninguém sabia ou precisava saber; a presença de um era o suficiente para o conforto do outro. Compartilhavam um pacto silencioso de melhor amigo, selado por uma troca de sorrisos quando o assunto se esgotava depois de um dia cheio.

Um dia, o menino percebeu o outro um tanto quieto. Perguntou o motivo.

É que amanhã você vai acordar e eu não estarei mais aqui.

O menino se desesperou a fazer perguntas. Traído, não entendia porque o amigo tinha que partir dessa maneira.

O outro olhou para ele, muito sério.

Escuta, não sou eu que vou embora. É você que vai esquecer de mim. É algo que acontece, eu sabia desde o início.

E por quê nunca me falou sobre isso?

Porque não tem nada que a gente possa fazer a respeito disso. As coisas são assim, andantes.

E o que vai acontecer com você?

Eu vou te falar uma vez só, então presta atenção. Tem uma hora, madrugada adentro, que a noite dá um suspiro profundo no meio do sono. É nesse momento, quando tudo está tão quieto que dá ouvir o silêncio, que a gente vai se encontrar.

Mas como que eu vou saber que hora é essa?

Não dá pra saber. Mas você vai saber.

O tempo passou e o menino se tornou pai, avô. Mas, de vez em quando, ainda via o amigo em seus sonhos. Algumas vezes estavam perdidos dentro do elevador que ele tinha que tomar para ir até o escritório (o elevador nunca chegava e ele sempre atrasado), ou aparecia se oferecendo como bote salva-vidas naqueles sonhos duros em que se afogava em águas tranquilas. Algumas vezes, quando havia algum tempo antes do despertador soar às cinco da manhã, trocavam algumas palavras.

Que bom te ver. Pena que não vou me lembrar de você quando acordar.

Não tem problema, eu vou continuar por aqui.

E o homem abria os olhos e o sonho ficava lá na sua mente. De lembranças mesmo só o elevador, os relatórios a cumprir, o medo da água e às vezes, um sorriso que o assaltava vindo do nada no meio da tarde.


sábado, 28 de setembro de 2013

Fim de jogo

As pipocas não estralavam na boca. Os dentes se afundavam; pareciam feitas de um isopor ensebado.

Olhou para o torresmo meio queimado com nojo, enrolou o saco e jogou no meio fio.

A chuva quando viesse levaria a pipoca embora enxurrada abaixo, engordurando os dentes sujos da boca de lobo.

Pipoqueiro safado, enrolava todo mundo vendendo pipoca de três dias atrás. Uma mocinha colegial se aproxima, apanha um saco, pega o dinheiro do bolso, paga e sai, rindo com as amigas.

Olhos de pipoqueiro estralando na bunda da garota, produto fresquinho, diferente do outro na panela.

Carro de luxo descendo a rua. Porque esses caras sempre tinham que ter uma caminhonete de cinco metros?

A porta se abre, uma criança corre pra dentro.

Eu corro pra dentro, pelo outro lado.

Bom dia, como foi na escola?

Caralho, quem é você?

Um dia esses caras iam entender que a última coisa que importava era quem eu era.

Arma por detrás do banco, na altura do pulmão.

Pai, quem é ele?

Tal pai, tal filho.

Escuta só, vamos indo, faz teu curso, leva o piá pra casa da mãe ou seja lá pra onde você leva ele sempre.

Isso é um sequestro...? cara, leva tudo, leva o carro...

Esses caras um dia ainda iam entender que a última coisa que eu gostaria de ter era um desses carros de cinco metros, quinhentos cavalos e suspensão aprovada na Europa.

Pai...

Fica quietinho filho, tá tudo certo.

Olha pai, um revolver igual o do GTA!

Pois é. Fica quietinho, filho, fica quietinho. Não fala nada.

Seguimos o curso.

A sujeira da cidade era coisa de louco. Só assim para morar naquele amontoado de prédios, cuspidores de entulhos e mais entulhos, comida podre, embalagem de miojo mal comido e gente nos horários de almoço. Nem todo o sabão do mundo pra dar conta de limpar tanta gente imunda.

Olho no olho pelo retrovisor.

O cara suava.

Pra onde a gente tá indo, pai?

Pra casa da tia Dulce.

O teu amigo vai também?

Tia Dulce devia estar fazendo um bolo a essa hora. Avental de flor, mexendo a massa. Nem ia ficar surpresa com o sobrinho chegando pro lanche. Fiz bolo de chocolate, teu preferido, filho. Brigado Tia Dulce, mas você não é minha mãe. Pois é, mas a mamãe não sabia fazer bolo de chocolate. Na verdade, tua mãe mal sabia o que era um filho.

A mãe deveria mandar um beijinho por mês via Skype. E uns jogos de videogame no aniversário.

Por quê tu tá fazendo isso, cara?

Você gosta de videogame, guri?

Olho acanhado. Balança a cabeça.

Então pensa que esse é um jogo bem legal que teu pai tá participando.

O pai não gosta de jogo.

Mas ele vai mudar de opinião sobre isso, pode deixar.

Caminhonete entra numa rua arborizada. O cheiro podre diminui, se disfarça. Mas ainda está lá, debaixo dos pés.

Casa da Tia Dulce é um sobrado meio decadente, lajota portuguesa, santa na fachada, em cima da janela.

Tchau filho.

Mas você não vai descer com a gente, pai?

Olho agitado no retrovisor.

Agora não. Fala pra ela que eu volto mais tarde pra te pegar.

Tá bom.

Piá pega a mochila e desce.

Tal pai, tal filho.

Olho no retrovisor, indeciso.

Toca adiante.

Pra onde?

Pro lixão, dá vontade de dizer. Lá pra onde você e toda essa sujeira devem ir. Mas sujeira com sujeira acumula e fica mais difícil de limpar. O carro desliza pela rua arborizada.

Silêncio.

Eu ainda não entendo porque tu tá fazendo isso. Se não é roubo, nem sequestro...

Pra que tentar entender tudo? Captar o quadro, resolver o quebra-cabeças, entender coisa com coisa. Parece que saber tudo faz você melhor que teu vizinho, teu conhecido, o pipoqueiro safado ou teu sócio.

Teu sócio tá te passando pra trás, sabia?

O quê?

Rua arborizada acaba em terreno baldio. Rua sem saída, cheia de lixo. Carro pára. Não disse que só estavam querendo esconder o fedor?

Teu sócio. Ele pagou pra fazer você sumir.

Quê? Sério? Filha da...

Fim de jogo.

Mas que carro horrível.

Abre porta, sensor de porta aberta apita.

Umas gotas de chuva caem no pára-brisas. Sensor de chuva começa a fazer seu trabalho, limpeza automática.

O chão começa a ficar molhado, encharca lentamente os sapatos.

Melhor passar no supermercado antes que escureça.











sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Hipótese para conto chinês

Certa vez, quando o universo não passava de um plano de si mesmo, o Sol reuniu todos os astros que habitavam perto de si e disse:

- Meus amigos, tenho aqui comigo que levamos todos até agora uma existência muito interessante. Foi com alegria que acompanhei o desenvolvimento de cada um de vocês que, talvez por acaso, talvez por atração do destino, decidiram permanecer perto de mim aqui nesse canto do universo. Mas não podemos continuar a viver dessa maneira. Assim como cada um de vocês sempre está em movimento, seja em volta de mim, seja rodando sobre si mesmos, estamos também caminhando para algum lugar dentro do universo. E não podemos chegar lá, se é que se pode dizer nesse sentido que a palavra chegar tem algum sentido, traçando uma trilha que seja o tempo todo segura e direta, pois assim nada é nem poderá ser. Decidi que já é hora de encontrar um desafio novo para nós, algo que possamos nos orgulhar de termos criado por nossas mãos. Tenho aqui uma invenção que se chama vida e ela, diferente do que já conhecemos, é totalmente imprecisa e não tem uma forma definida. Mas entendo que é nosso destino aceitá-la entre nós, porque assim poderemos entender alguns dos mistérios da criação.

Todos os astros que escutaram essas palavras do Sol olharam uns para os outros, e ficou de concenso que as palavras daquele que os comandava tinha razão, visto que eles mesmo já estavam acostumados desde sempre a seguir aquilo que a estrela maior ditava. 

- O problema, meus caros, é que essa invenção é por si demais frágil e pequena para ser dividida entre todos nós. Só um dos que aqui estão poderá ser o guardião da vida. Por isso, gostaria de ouvir vocês para saber qual é o mais adequado para carregar consigo essa importante missão.

Assim que o sol terminou sua fala, tempo que, se pudesse ser medido, poderia equivaler a eras e eras inteiras, os planetas começaram a conversar entre si. Logo Mercúrio, que era rápido no pensamento, disse:

- Senhor, gostaria de me candidatar a essa função. Sabe bem que, entre todos os que aqui estão, sou o mais ágil e eficiente em cumprir as tarefas que me são dadas. Se permanecesse com a vida, poderia compreendê-la mais rápido que qualquer um e cumpriria logo essa missão de entender a criação. Como estou sempre ao seu lado, bastaria um olhar seu para acompanhar a vida em seu curso e não haveria necessidade de enviar mensageiros para saber se ela está sendo bem cuidada.

Vênus foi o próximo a falar, talvez porque estivesse mais próximo e tenha ouvido as palavras de seu vizinho:

- Tem ótimos argumentos, meu amigo, mas creio que também posso ser o escolhido. Todos concordam que sou o mais belo dentre todos os astros visíveis. Também consigo apreciar e construir as coisas mais belas de todas as galáxias. Basta olhar para minhas montanhas verdes e vales tão bem acabados para perceber. Comigo, a vida seria próspera e, com certeza, de uma beleza infinita.

Nem bem Vênus terminou de falar e logo uma voz imponente se fez ouvir entre todos. Era Júpiter:

- Escolha-me senhor! Sou o mais forte e grandioso astro dentre todos aqui. Comigo, a vida estaria bem protegida e aprenderia com um guerreiro a ser indestrutível!

Diante do discurso de Júpiter, todos os outros planetas ficaram em silêncio, atordoados. Após algum tempo, uma voz fina e muito baixa falou. Precisou de algum tempo para todos saberem que se tratava de Saturno:

- Com o devido respeito por todos os presentes, creio que a vida precisa, acima de tudo, que lhe ensinem tudo o que se sabe sobre o Universo. Dessa maneira, ninguém melhor que eu, dominador das ciências possíveis e impossíveis, para ensiná-la.

Um burburinho correu entre os planetas. Ninguém ousava discutir com Saturno quando ele falava, pois até hoje não entendiam como ele havia dominado a incrível técnica que forjou os belos anéis que o coroavam como sinal da sua inteligência e perícia.

Além deles, muitos outros continuaram seus discursos. Não só os planetas falaram, mas também as luas,  que muitas eram, os cometas, que levaram eras inteiras para conseguir se fazerem entender pelo sol, já que nunca paravam em suas trajetórias e só podiam falar seus argumentos enquanto, muito rapidamente, passavam por perto do rei, e outros astros e estrelas que hoje em dia não sabemos ao certo quem eram, só que existiam por ali naquelas épocas e hoje em dia se foram para outras distâncias. Todos tinham bons argumentos para serem portadores da vida e, com certeza, qualidades não faltavam a nenhum deles.

Finalmente se seguiu um silêncio de algumas eras por ali. O Sol suspirou:

- Compreendo o que me dizem, e escutei todos os argumentos que me apresentaram. Fico feliz que tantos gostariam de serem portadores dessa tão arriscada e misteriosa missão, mas preciso de tempo para refletir. Não é com uma simples revolução que se chega a uma decisão tão complexa.

E assim o Sol ficou ali, fechado em si mesmo, a pesar tudo o que havia escutado. Como não havia outra solução que não esperar, muitas rotações se passaram e as coisas continuaram sua trajetória universo afora. Algumas, cansadas de esperar, se foram para outras partes do Universo, porque, mesmo numa era de tantas incertezas, uma das únicas verdades que existia é que espaço não faltava. Por fim, o Sol se pronunciou:

- Amigos, depois de muito refletir em minha luz, elaborei nova ideia.

Todos seus próximos logo se sobressaltaram, excitados. Quem teria sido o escolhido do Astro-rei?

- É certo que muitos de vocês fazem por merecer serem portadores da vida. Porém, antes que faça minha escolha, gostaria de ouvir alguém que, há muito está perto de mim e nada disse enquanto discutíamos. Que pensa sobre tudo isso, Terra?

A Terra era um dos astros mais próximos do Sol e não tinha fama alguma entre todos os presentes. Não era ela a maior, nem a mais rápida, bela ou inteligente dos astros conhecidos. Tanto que, até escutar seu nome pronunciado pelo Sol, achou que deveriam estar falando de outro. Envolvida em uma rotação e outra, com uma voz que pela primeira vez muitos por ali ouviam, disse:

- Nada posso opinar sobre questão tão importante, meu senhor, porque eu ainda pouco sei sobre mim. Ainda há pouco era uma bola de fogo que pelo universo cintilava, envolvida em revoluções. Mas agora nem isso sou mais. Sinto dentro de mim uma energia potente, mas que aos poucos vai se apagando. Minha superfície é incerta e tampouco tenho controle sobre ela; algumas vezes produzo uma montanha; outras vezes produzo vales profundos e irregulares. Sou inconstante e às vezes me desespero, sem saber para onde vou. As lágrimas do meu choro produzem mares e rios gigantescos, que destroem parte do trabalho que, com todo cuidado, tento construir. Como sou dessa maneira tão estranha, não posso dar garantia alguma que comigo a vida estaria a salvo, por isso não tenho razão alguma para reclamá-la.

A Terra, tão calada desde sempre, depois de falar, fez uma reverência ao Sol e voltou a fazer as suas rotações como sempre fazia.

O Sol ponderou e por fim se pronunciou:

- Acho que já tenho a resposta que procurava, assim como encontrei quem deve ser o portador da vida. Terra, você foi a escolhida.

Os astros todos pararam, incrédulos. Se essa falta de rotação alterou alguma coisa no Universo, dificilmente saberemos. Mas o certo é que, pela primeira vez por ali, as coisas, que desde sempre estiveram em movimento, ficaram por algum tempo paradas, sem acreditar. Por fim, a Terra falou:

- Por que o senhor fez essa escolha?

O Sol respondeu:

- Entendo que a vida é bastante preciosa, mas também ela é, como disse para todos vocês, imprevisível. Acho que não haveria lugar mais interessante para observá-la se desenvolver que a Terra. Juntos, poderão aprender e, ao mesmo tempo, ensinar a todos nós. Você, Terra, irá gestá-la em seu ventre e a vida, quando começar a existir, a respeitará como uma Mãe. Não será uma tarefa fácil e muitos conflitos surgirão. E também muitas questões e mistérios ficarão sem resposta. Mas só assistindo a vida se desenvolver é que talvez aprenderemos, de alguma forma, qual o mistério do Universo.

E tudo voltou a revolucionar-se novamente.

E foi assim que a Terra passou a gestar a vida.

E é assim que os mais antigos entre nós contam que começamos a existir.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Apenas Negócios

Havia algo de errado nos jeitos daquele cara.

Mas a cara em si não era o problema.

Óculos escuros à meia-noite. Uma ou outra cicatriz perdida pela testa, pelo queixo. Nariz torto, quebrado há seis meses ou há seis anos. Leve cheiro de álcool sujo. Isso a gente vê quase todo dia. Nada extraordinário.

O que não colava naquele quadro todo eram as lágrimas que caiam.

É que eu tenho problema desde criança.

Lenço bordado, bem branco, limpando o rosto. Dobrava, bem cuidado, no bolso.

O negócio era simples. Meu sócio está me passando pra trás. Não precisa seguir o cara, saber onde ele vai, com quem anda, pegar ele com a mão na botija ou na xoxota da minha mulher.

Me falaram que você pode me ajudar de outro jeito.

Quero que ele suma.

Desaparecer. Esse era meu negócio.

Sabia desaparecer tão bem que todo mundo queria que eu fizesse o mesmo truque pra todo mundo. Faz ele desaparecer! Palmas da platéia, abaixem a cortina.

Seria massa abrir uma escola de desaparecer, nunca pensou nisso? Dava até capa de revista de negócio.

O negócio era simples. Como sempre.

Metade agora, metade depois. Bastava deixar só metade da cabeça dele.

O cara está me passando pra trás. Sempre foi meu irmão, tratei o desgraçado a pão de ló e isso que recebo.

Limpa a lágrima no rosto, por debaixo do óculos.

Acho que estou precisando de detergente em casa. Qualquer um. Cheiro barato, limpeza barata, crime barato.

Envelope pardo. Porque esses caras sempre usam um envelope pardo?

Você me encontra aqui, amanhã.

Ele se levanta pra ir ao banheiro, secar as lágrimas e a bexiga.

Desapareço pela porta da birosca.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Pangéia

Nasceu quando tudo ainda era novo.
sob as ondas pré-históricas,
pré-colombianas
antes do tempo por se contar.

Hoje vive na Colômbia.
debaixo de uma pedra,
no meio dos bichos
e da mata fechada.

Mesmo assim, não se esqueceu.
dentro dela ainda habita
distante no sonho
o som perdido daquele mar.