domingo, 23 de fevereiro de 2014

Conto de verão

A música a embalava pela vida. Embalava mesmo; jogava a menina numa caixa de felicidade momentânea que durava 3 minutos e 27 segundos, contando o fade-out no final.

Descobrira-a nalguma tarde perdida de sua adolescência entre um clique e outro de seu computador. Ao escutar pela primeira vez nem deu muita trela; parecia com coisa qualquer, quase tão trivial quanto os imãs de geladeira de cidades do nordeste que povoavam a geladeira da casa em misterioso diagrama.

Mas o tempo foi generoso com a composição. Por uma daquelas coincidências binárias, o arquivo foi sorteado entre tantos e tantos outros habitantes do computador da menina para compor o seleto grupo de músicas para serem ouvidos no aparelho portátil. Então, quando ela voltava cansada do tempo ruim e da vida feita de estágios e mais esperas, aos poucos foi se afeiçoando ao ritmo compassado e à voz enigmática do cantor que pedia em um desespero triste e melancólico que alguém não lhe levasse o guarda-chuva em meio ao temporal que insistia cair naquele verão.

A música apaixonou seus ouvidos, seduziu de jeito cotidiano, mundano, do tipo sujeito insistente que passava todos os dias defronte a sua casa. Quando percebeu já estava a esperar o momento dela tocar em seu aparelho. Em verdade percebeu-se aguardando todos os dias o momento de ir embora, tchau telefone tocando, tchau relógio ponto, adeus papo de colega que espera o café, anda logo fila do ponto, corre motorista para arrancar o ônibus que lá vem ela e dessa vez está até chovendo vejam só.

Sorriso de satisfação de vidro embaçado pela lotação.

Escutava apenas uma vez. Só uma vez por dia. Tinha medo de gastar o encanto de seus versos, de seus instrumentos tão bem orquestrados, como disco de vinil que pode se riscar e perder as ranhuras.

Um dia escutou um colega dizer enquanto procurava dar algum doce ao tristonho café da firma que a música era a sua preferida. Ela se engasgou com o café, sorriu amarelo, saiu pela porta errada. Foi até o banheiro e olhou para o espelho de canto de olho.

O amor de sua vida a havia traído.

Ele saía com outro, de risinho fácil e bronzeado desbotado.

O caminho de volta naquele dia foi penoso. Quando chegou a vez da música, os versos aos poucos foram ficando sem sentido, quase bobos, vesgos, coisa de chantagista. Enjoava no ônibus lotado. Quem antes chorava poeticamente pelo guarda-chuvas perdido na chuva de verão agora soava apenas como um mimado reclamando de algo que, no fundo, não era importante.

Bateu a porta da geladeira tão forte naquele dia que a praia de Maragogi foi ao chão, perdendo um barquinho feio de gesso.

Tentou por dias a fio esquecer aquilo tudo, deu outras chances várias a seu amor. Mas nada mais adiantava. Algo se quebrara ao dividir com alguém aquilo que lhe era tão especial.

Passou a não escutar outras músicas, esqueceu o aparelho em casa. Por fim, em uma noite recheada de tristeza, retirou o arquivo de sua lista de favoritas.

O tempo passou, novas viagens de ônibus e músicas vieram, foi embalada nos braços por muitos amantes, trocou muitos sorrisos secretos consigo mesma através dos espelhos e janelas.

Até que um dia foi abordada pela música novamente.

Ele chegou, de olhos baixos, entre uma oferta de frango desfiado e um anúncio de limpeza imediata no corredor treze enquanto ela fazia as compras da casa com seus netos.

Ao chegar em casa, pulso acelerado, mandou que eles brincassem lá fora. Do fundo de uma das prateleiras mais esquecidas da casa retirou o mesmo velho aparelho. Levou-o até o sofá, colocou os fones de ouvido e apertou o play.

Nenhum som chegou a seus ouvidos; o aparelho já não funcionava há décadas.

Mesmo assim, trocou um olhar embaçado com a janela.

Lá fora, a criançada brincava na chuva de verão.


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