domingo, 27 de dezembro de 2009

Canícula

Não era boa coisa visitar o mesmo lugar de antes. Porque, apesar que de pessoas conhecidas o lugar já estivesse vago, as portas, janelas e fechaduras ainda o reconheceriam.

Pedras quentes ao meio dia; a alameda estrangulada e torta. Parou perto de uma placa de proibição qualquer. Pisou nalgum grude de piche; sapatos com chiclete preto no chão.

Avistou o busto, perdido entre um prédio e outro. As escadinhas ainda estavam lá, os mesmos pombos. Sentou ao sol; nunca houvera sombra para aquele ilustre desconhecido.

As janelas fechadas, ao meio dia. O suor lhe respingava da testa. Um caminhão das casas Bahia passou devagar, procurando um número. Acendeu um cigarro e sentiu a vida e o sol lhe queimando aos poucos entre os dedos.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dead Man Wake

Já de manhã, sonhou que chegava na casa do topo do morro. Abria os olhos e as portas; as janelas iluminando o cheiro de café e de fumo fresco.

Entrava pela porta e se sentava. Os móveis estavam lá ainda, só que cobertos com poeira. O pó fazia-os diferentes, a velha espingarda que pertenceu a seu bisavô pendurada por num prego por detrás da porta. Foi com ela que ele exterminou boa parte dos bichos das redondezas e, por fim, sentado no alpendre, arrebentou seu olho e metade da sua cara, que foi pousar no pó do pátio das galinhas.

Um café iria bem. Uma bebida pra quem volta de viagem. Sentia-o fresco, recém feito pela mulher. Na última olhada, uma aranha vivia dentro do bule, meio torto.

Um café. E depois partir.

Lá fora, sabia que o esperavam.

Primeiro via um, se mexendo nos matos. Depois o outro; o cano brilhante refletindo o sol. Sabia que dois jamais andavam juntos, então é certo que o terceiro estava lá também, na visão que ele tinha do nenhum.

Seu velho revólver na mesa suspirou; a conta da chance nas balas. Três. Acertaria um, com sorte dois, três jamais. Todo o acontecer levaria alguns segundos mas os corpos teriam que esperar o sol fugir pra poderem esfriar.

Olhava o chão; a mesma velha madeira de sempre, gasta dos passos e das patas do cachorro que um dia andou por ali em torno da mesa dos donos. A cama onde a mulher tivera seus filhos (todos eles, ou só alguns?) parecia também suspirar; o som dos rangidos ainda ali, escondido nas entranhas de madeira velha, esperando se manifestar quando alguém ali se sentasse.

Meio dia seria a hora de alimentar o gado, geografia raquítica que podia ser consultada nas costelas à mostra na luz filtrada da única árvore-sombra em quilômetros. Só um pouco de comida, o suficiente para viver mais um dia, até o meio dia seguinte.

Dava para sentir a inquietação dos três lá fora. Já nem faziam questão de parecer só um. Melhor terminar o assunto logo, pra poder ir descansar na sombra de um prostíbulo qualquer, gado-mandado-feito-homem.

Tirava o chapéu, colocava a arma sobre a mesa, tamborilava os dedos.

Suspiro.

Encostou a cabeça, de leve na mesa. O pó da viagem sempre tem efeito de sono sobre a cabeça.

Só mais um tanto, já resolvemos o negócio.

No canto, o velho relógio cheio tempo-parado, nem se dá o trabalho de soar.

Uma réstia de sol batia em sua testa.

Fechou os olhos.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Festas

Sempre que soava o telefone, esperava que fosse ela. Pois bem poderia ser; soadas de telefone são iguais pra todo mundo. Vez ou outra nem atendia. Sempre poderia ser ela, naquela vez ou na próxima.


Quando escutava no aparelho, a voz. Os olhos no muro depois da janela. Não era pessoa, era voz. Sempre nas datas mas nunca em todas as datas. Festas e os votos comuns de qualquer coisa ditas na linha por ela faziam dele o quanto que tanto esperava.


Um dia, verificou a gravação da secretária; a fita estava corrompida. Do outro lado, a voz disse, antes se acabar.


"...então, um Feliz Natal pra você, viu".






quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Dormente

Guiado pelas curvas, acompanhava os trilhos. Gravata frouxa, roupa amassada. O celular já quase sem bateria, as chamadas sem resposta.

Uma curva a mais e o carro foi parando, parando. Parou. Ele mesmo estava lá atrás, detrás do pó.

Saiu do carro, esqueceu da pasta. O trilho do trem continuava, sempre o caminho de terra ao seu lado.

Ficaram as portas abertas, o farol aceso. Deu alguns passos, parou. Esquecera-se de algo. Deixou cair os óculos de grau que trazia na cara. Pisou neles de leve, atento ao som do vidro quebrado.

Subiu nos trilhos. O telefone no bolso vibrou, acusando bateria fraca e depois se apagou.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Fim de ano

Velho, já tão pouco via! Apenas o ali em frente, poucas polegadas do nariz. Sentavam-no debaixo da árvore e lá estava nas tardes, suas pequenas vidas e idas enquanto houvesse sol. Aspirava o ar que lhe cabia; a história que ainda havia a quedar.

Certo dia, finita a jornada, quando foram recolhe-lo, um comentou:

- Mas que frio faz hoje, não?

Olhou para seu nada:

- E que flores não dá essa árvore, hein? Ficam melhores quando se sai tempo assim.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Legoland

Hoje me peguei pensando em meus brinquedos Lego. Que parte da infância não construiram! Até hoje em dia, se pisar numa loja de brinquedos, fico a observar as pequenas figuras, personagens de fábulas de plástico que vivem em cidades, castelos medievais, barcos piratas e estações espaciais.

Nos armários de minha casa, repousa uma cidadezinha desmanchada. Posto Policial (com uma das vidraças perdidas para todo sempre, há muitos anos caso arquivado), Carro de Bombeiros (que eu sabia montar de cor e com os olhos fechados, mas que agora me parece quebra-cabeças insolúvel), Autódromo (bons tempos de Aryton Senna, corria pela casa como um raio, carrinho na mão), Casa (sempre estranhei que houvesse só uma para a cidade toda e que nela não houvesse uma única cama, mas enfim, são mistérios do mundo do Lego), Corpo de Bombeiros (desse não conheço muito; era responsável pelo setor de segurança da cidade; os incêndios imaginários ficavam por conta de meu irmão) e, é claro, a construção mais imponente da cidade Lego: o Aeroporto (onde mais de uma vez aconteceram sequestros: reflexo direto das inúmeras vezes que eu e meu irmão viámos a fita Duro de Matar, com Bruce Willis). E não, não havia prefeitura, escola, posto de saúde, ônibus, metrô. A estanha cidade de pecinhas coloridas se acabava aí.

Quantos dias de férias passados entre esses prédiozinhos, gerindo e inventando a história de vida desses personagens amarelos.

As caixas ainda estão lá. As do meu irmão mais bem cuidadas; as minhas já sem tampa, meio equilibradas debaixo da batalha naval e do banco imobiliário. As cidades estão desmontadas há anos, muitos anos. Acho que já esqueci como se as controem; acho que nem os Legos se lembram direito de como era estar vivo dentro daquele microcosmos infantil.

Mas mesmo assim, o mais interessante é que durante anos eles ficaram e ainda estão lá, com baita sorriso no rosto.

domingo, 11 de outubro de 2009

Ecrã

Deitado sobre a TV
Da qual olha e olha
mas nada vê,
melhor sonhar sonhar e ser
Muito mais que um gato
somente um gato.

Acordar e olhar os pássaros
preparar o bote e caçar
não por diversão mas pela precisão
de alimentar seu espírito voador.

Para Nino, o gato.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Memória

Parados, olhavam atentamente.

- Talvez eu queira lembrar disso depois e não consiga...

O outro responde.

- Talvez você tente esquecer disso depois e não consiga.

sábado, 12 de setembro de 2009

E eu?

E eu,
que pena até tenho
do frango
na caixa de ovos?

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Fim de caso

Andar por vielas engraxadas,
cortar a neblina e
guardar a faca.

Acompanhar os passos
do salto na pedra.

Sondar o casaco
que lá se vai,
sem saber
que quem espia mesmo
é o ciúme.

sábado, 22 de agosto de 2009

Ao velho psquiatra

Sentado no banco de pedra,
sublimava-se.
Louco, absurdo
mesmo vigiado resnascia
cem mil vezes num segundo,
não dentro de si
mas nas milhares de coisas
sub-lineadas.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Ao Demo da Esquina

Polaca Azeda, arzinho de gatuna
sai da pensão.
Ubaldino no boteco, roupa amassada
copinho de álcool encardido
sonha através da neblina.

Polaca Azeda, boca pintada
desce a rua.
Ubaldino, olhinhos de desejo
faz beicinho, chupa o ar
ah, se a serpela me olhasse.

Polaca Azeda, vida fácil
entra na casa do velho.
Velho do demo, dono da esquina
certeza que paga
com Perfume do Paraguai.

Polaca Azeda, sem amor
dia desses te pego pela rua
vira copo, estrala língua
me dá mais da cana, seu Joaquim
é hoje que eu me enfarto.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Diafragma

Passante sozinho, descendo a rua,
Cambaleou.
As janelas nuas, sombrias
portas fechadas, trancadas, sem saídas
As entradas na cabeça, pô-la na pia,
batizar-se de novo, nascer-se do ovo.
Quebrado passado, fechado futuro,
olhos opacos, rotos fatos.