segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Concreto

Do alto do terraço, lá embaixo os carros
as pessoas que pessoas não eram.
Debruçado no parapeito, meio a esmo
o som difuso das buzinas.

A noite sempre envolta no sangue
das avenidas que iam
e das estrelas que não vinham
o sinal distraído piscando.

A publicidade de Nescau
iluminava sua vida, elétrica
na tela vizinha, sempre ela
a moça do sorriso bucal.

O dia se ia e o ônibus vinha
a cidade respirava suspirando.
E o moço lá dos altos
no compasso da beirada do tudo,
sonhava.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Velha história

Não adiantava mais esperar, o lambe-lambe não voltaria. Meses já a sua casinha fechada, no velho parque. Todos os dias aparecia para o trabalho, pontualmente na hora de costume. Quando um dia não apareceu, pensaram em doença, nalgum impedimento, um ou outro contratempo. Os velhos do dominó falaram que deveria ter ido visitar algum parente, ainda que soubessem que o lambe-lambe já não tivesse mais nenhum vivo próximo ou distante.

Por fim, decidiram desmontar a casinha. Era preciso abrir espaço para abrigar outro carro de doces. Já há anos que vinham falando em tirar o lambe-lambe dali; poucos ou quase ninguém utilizava seus serviços. Preferiam tirar as fotos eles mesmos, com suas máquinas digitais.

Abriram a portinhola, que nem bem fechada ficava. Lá dentro, uma infinidade de fotografias coladas pelas paredes, guardadas em caixas de sapato. Sorrisos de crianças, pais contentes, namorados de minuto, amantes de anos. Pessoas que nunca vieram buscar suas fotografias, reveladas há anos, muitos anos.

A casinha se foi; quem passa pelo parque hoje pode ver ainda o telhadinho, que foi reutilizado na jaula dos macacos. A prefeitura pagou um sepultamento simbólico na ala pobre do cemitério municipal. O tempo já longe se vai, mas se perguntarem pros velhos jogadores de dominó, dirão que o lambe-lambe se sumiu no mundo em busca do último sorriso que lhe faltava pra suspirar contente e que decerto ainda anda por aí, atrás dele.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O cavalo

Galopava pelos montes de terra. O sangue ainda vermelho. Vermelho cheiro forte. Passou por um homem deitado. Junto a todos os outros, deitados. Pisou em falso. Uma das ferraduras presas nalgum buraco do chão. O chão, chegando tão próximo. Cair é o fim, tanto pra ele quanto pro outro, nas costas.

Os olhos aquosos naquele tempo ruim. O ar sai da garganta em jorros, faz neblina. Pra se juntar a outra névoa, que cobre tudo. Menos os gritos, aqui e ali. Ainda vivos.

Aquelas visões vinham, de quando em quando. Quando estava no capim verde. Principalmente quando estava no capim verde.