segunda-feira, 15 de março de 2010

Historieta para ilustrar sessão de personagens de revista usada de bordo

Desde pequena, a mãe dizia que encontraria o amor da sua vida em um avião. Andava pra lá e pra cá, correndo pelo quintal de casa, sempre que ouvia um barulho lá nas nuvens. Nos aniversários, todos na família já sabiam que não adiatava trazer bonecas pra festa. Aviões, é o que ela queria.

Mas voar, voar mesmo só aos 17 anos. Demorou tanto porque a mãe tinha medo que ela sofresse um acidente. Justo a mãe, que tanto falava que ela encontraria seu amor num avião.

Quando embarcou, aquele estado de nervos. Um senhor barbudo se sentou ao seu lado. Nervosa? Coitadinha! Seria ele o amor da sua vida? Contrariada, pensou em desistir.

O vôo passou, ninguém lhe sorriu. Só a aeromoça na saída do desembarque, mas isso não conta.

Irritada diante da possibilidade de ter que esperar mais 17 anos pelo próximo vôo, decidiu ser aeromoça. É pra aumentar as chances de poder encontrar ele, disse pra mãe quando contou a decisão. Mesmo contrariada, ela se contentou em perder a filha pras escalas aéreas.

A partir de então, tornou-se uma aeromoça exemplar. Sorriso perfeito, não derramava uma única gota de água ou suco ao servir seus passageiros, não demorava mais que 10 segundos para trazer o travesseiro para o senhor barbudo sentado na 45B. E, na entrada da ponte de embarque, sempre um friozinho na barriga. Ele poderia entrar por ali a qualquer minuto, o amor da sua vida.

Um dia, voando alto, o piloto avisou que o avião passava por problemas e que precisavam fazer um pouso de emeragência. Sentou-se na poltrona, aflita, pensando que tudo fora uma grande perda de tempo. Não ia encontrar o amor da sua vida. Ou sua mãe estava errada ou ele passara por ela quando foi atender o senhor barbudo da 45B. Xingou baixinho o barbudo da 45B. O pior de tudo é que achava que ele era casado, aquele safado.

O avião cai, 316 passageiros morrem. Sobrevivem só ela e mais uma pessoa. Um homem. Ao retomar a consciência no hospital, 2 semanas depois, queria a todo custo saber quem era essa criatura. Porque muito bem poderia ser o amor da sua vida. Mas, por alguma razão nunca conseguiu o telefone dele.

Logo depois do acidente, desistiu da aviação e virou secretária do consulado de Honduras. Ela viaja de avião, de vez em quando. Se alguém talvez estiver interessado em conhecê-la, é só comprar a poltrona 45B de qualquer vôo e esperar. Vai que alguma moça se senta do seu lado e lhe dá um sorriso.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Profecia para idealizar livro em promoção de gôndolas de supermercados de bairro

Quando jovem, uma cigana encontrou-o e disse que teria uma morte horrível. Marcado pro resto da vida, sempre tinha cuidado em viagens, forrava sua casa de tapetes emborrachados, não deixava a porta aberta, pra não pegar friagem ou ser assaltado cruelmente. Na rua, olhava pros dois lados cinco vezes. Não ajudava as velhinhas a atravessar a rua; elas poderiam sofrer a sua sina, só por estar perto.

Quando se casa e tem filhos, procura a cigana de novo pra perguntar se o azar era hereditário. Não a encontra, o que aumenta seu augúrio. Para não arriscar, proíbe os filhos de fazer esportes perigosos. O que inclui futebol de botão, obviamente.

Um dia, precisa fazer uma viagem de avião. Quando no ar, a turbina falha, o piloto avisa que devem fazer um pouso forçado. Segura-se forte na poltrona, certo que seu destino chegou. O avião cai, 316 passageiros morrem. Somente ele e uma aeromoça sobrevivem. Perplexo, gostaria de perguntar pra ela se alguma cigana alguma vez disse que ela teria uma morte horrível, mas nunca conseguiu seu telefone.

A partir desse dia, tinha certeza que mais nada de mal lhe aconteceria. A cigana enganara-se. Envelhece, os filhos lhe dão netos, a família cresce. Um dia, de um mal súbito, desce ao hospital. A família ao seu lado, o neto mais velho segura sua mão e dá um sorriso pra mãe, do outro lado do quarto. Sim, gostavam tanto dele! Os papéis estavam prontos pra divisão de bens.

A enfermeira passa pelo quarto, pra ajeitar seu travesseiro. Quando se inclina, fala baixinho: "viu só? Eu não costumo errar. Quer mais um travesseiro, senhor?".

segunda-feira, 8 de março de 2010

Cosmos

Cansou-se das coisas
as coisas do sempre
o sentar-se sozinho
em pequenas cadeiras
e o andar cabaisbaixo
pelos longos
longos
corredores.

Resolvido, resolveu
perder as chaves de casa
e se tornar cosmonauta.

Estudou os cálculos
e as probabilidades
das alegrias
e de felicidade
que teria quando partisse
pra morar no topo do céu.

No dia de partir
comprou meias novas
e achou
as chaves de casa.

E,
na nave radiante
o alumínio prateado
refletiu
o céu cinzento.

Ao se projetar o
projétil subiu
e flutuando,
depois de tanta espera
espiou pela janela.

Pobre cosmonauta,
que fugiu pras estrelas
só pra descobrir que, de lá
a Terra é muito maior
mais solitária e
inexplicavelmente
azul.