segunda-feira, 4 de novembro de 2013

12:00

Puta que o pariu, o despertador não tocou.

Era Assessor do Deputado. O quarto assessor. Suas tarefas da manhã eram chegar com os jornais do dia (ainda de noite) no gabinete, depositá-los na mesa do Deputado e, mais tarde, fazer café para o resto do gabinete que chegava lá pelas oito e meia.

Seu maior feito foi ter recebido um elogio do pai do Excelente Deputado uma vez.

Esse café tá o diacho de bom. Deve ter sido aquela gostosa da Secretária que fez.

O menino sorriu pra ele mesmo lá detrás da pilha empoeirada de memorandos.

Calça, paletó, camisa (já perdendo a goma feita pela mãe há três meses), meia, sapato (será que o cara que engraxa iria estar perto da banca dos jornais hoje?), cabelo penteado.

O laço da gravata estava torto. Esquece, ninguém iria reparar.

Bolsa e corre pra porta. Café? Não pra ele.

Já na fila do ponto de ônibus, lembrou que esqueceu o celular enrolado nas cobertas. Olhou o relógio. Se voltasse, atrasava. Esquece, que tire o dia de folga hoje.

Pouca gente que não fosse passageiro da madrugada iria sobreviver a uma viagem daquelas. A depressão é tanta nas caras de quem pega o primeiro ônibus do dia que qualquer um que não fosse passageiro habitual ficaria com vontade de puxar a saída de emergência e sair rolando no asfalto, num riso nervoso.

O Assessor sorriu da ideia, olhando em volta. Caras fechadas.

Ninguém sorri no ônibus da madrugada.

Como não podia escutar música no celular, encostou a cabeça no vidro, colou os olhos lá fora. Faltava ainda umas duas horas pro amanhecer; tudo dormia, em silêncio. Quando o sol chegasse, a avenida ainda vazia ia ferver debaixo do sol escaldante, carro pra todo lado, gente com cara e pele de asfalto esburacado.

Droga de celular.

Se assustou com a voz delicada ao seu lado. Uma moça, feita de olheiras da noite ainda de hoje dava tapinhas na tela trincada de seu telefone.

Pode ser o chipe.

Olhar meio enviesado. Silêncio.

Já pensou em desligar e ligar de novo?

Não é nada disso. Esse negócio todo é uma droga.

A moça se virou pro lado do corredor e continuou a delicada operação comunicativa que, como assinalou, a partir de agora deveria ser tomada como particular.

Desceu no ponto da banca. Ficava uns quatro antes de onde tinha que descer. Mas era ali o único lugar que vendia jornais ainda de madrugada, porque era a banca que ficava de frente ao Jornal e recebia as edições antes que todo mundo.

Mas por que tenho que comprar o Jornal tão cedo, se o primeiro empregado da repartição só aparece às sete e cinquenta?

Arriscou a pergunta uma vez para o Chefe da Assessoria. Ele nem desviou o olho do computador. Era um homem pequeno, óculos grandes. O brilho da careca já tinha iluminado a carreira de muitos Assessores, diziam.

Menino, se você quer crescer por aqui, o melhor é não fazer perguntas. O Quarto tem que comprar jornal de madrugada, é o que sempre foi feito. E se o Deputado resolve madrugar e aparecer por aqui antes? Vai ficar sem jornal?

O Excelente nunca madrugava. Nunca madrugou. Só se fosse com a Secretária, fazendo hora extra.

Pegou um de cada exemplar. Verificou as datas, pra ver se não tinha nenhum trocado por engano.

Engano total; todos eram do dia anterior.

Não tem a de hoje?

O Senhor Gordo nunca desgrudava do radinho. Ficava lá atrás do balcão, só a peruca aparecendo. Tinha todo tipo de espelhos lá detrás, ouvido no rádio e olho atento nos movimentos das mãos sobre as edições. Pedimos o favor de não folhear as revistas, diziam as placas.

Silêncio.

Se aproximou do balcão.

Oi.

Levantou o jornal já meio murcho do dia anterior.

Não tem o de hoje?

Olho ensebado.

Não chegou ainda.

Silêncio e bolero para embalar a madrugada que já se ia.

Suspirou.

Saiu e olhou a garagem do jornal, logo em frente. Pouca luz, não parecia estar produzindo nada. Em compensação, as luzes das redações, logo acima, todas estavam acesas. Aqui e ali, vultos andando. Um vulto olhava pela janela para a Banda do Gordo.

O Vulto e o Assessor trocaram um olhar de longe, os dois com as mãos nos bolsos.

Seguiu andando. Talvez na outra banquinha, debaixo da repartição.

Chegou quando o dia raiava, os passarinhos já assanhados nas árvores da Mega-Praça que ficava defronte.

A banca só abria sete e quarenta. Tiro arriscado, mas fazer o que.

Subiu para a Repartição. O porteiro cochilante abriu a porta para ele.

Bom dia, Branca-de-Neve.

O senhor fez um sinal de cabeça. Meio sorriso de meia dentadura. A TV preto e branco de cinco polegadas estava fora do ar, anunciando serviço de manutenção no canal.

A repartição vazia. Ar condicionado a nove graus. Ar seco, rarefeito do Himalaia do vigésimo nono andar.

Entrou pela porta de serviço, que dava na cozinha. Lavou as mãos e o rosto da andança, ajeitou o cabelo e o paletó. Na cozinha, derramava o pó pro café quando ouviu os alarmes.

Muitos alarmes, pequenas ambulâncias saudando o dia que raiava.

Saiu até os escritórios. Aqui e ali e acolá, todos os computadores gritavam. O relógio digital da parede também fazia parte do coro, por mais que ele nunca pensou na vida que o relógio digital da parede tivesse algum som escondido nas suas entranhas de quartzo.

As telas ligadas. Todas azuis. Uma só mensagem.

12:00.

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