sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Hipótese para conto chinês

Certa vez, quando o universo não passava de um plano de si mesmo, o Sol reuniu todos os astros que habitavam perto de si e disse:

- Meus amigos, tenho aqui comigo que levamos todos até agora uma existência muito interessante. Foi com alegria que acompanhei o desenvolvimento de cada um de vocês que, talvez por acaso, talvez por atração do destino, decidiram permanecer perto de mim aqui nesse canto do universo. Mas não podemos continuar a viver dessa maneira. Assim como cada um de vocês sempre está em movimento, seja em volta de mim, seja rodando sobre si mesmos, estamos também caminhando para algum lugar dentro do universo. E não podemos chegar lá, se é que se pode dizer nesse sentido que a palavra chegar tem algum sentido, traçando uma trilha que seja o tempo todo segura e direta, pois assim nada é nem poderá ser. Decidi que já é hora de encontrar um desafio novo para nós, algo que possamos nos orgulhar de termos criado por nossas mãos. Tenho aqui uma invenção que se chama vida e ela, diferente do que já conhecemos, é totalmente imprecisa e não tem uma forma definida. Mas entendo que é nosso destino aceitá-la entre nós, porque assim poderemos entender alguns dos mistérios da criação.

Todos os astros que escutaram essas palavras do Sol olharam uns para os outros, e ficou de concenso que as palavras daquele que os comandava tinha razão, visto que eles mesmo já estavam acostumados desde sempre a seguir aquilo que a estrela maior ditava. 

- O problema, meus caros, é que essa invenção é por si demais frágil e pequena para ser dividida entre todos nós. Só um dos que aqui estão poderá ser o guardião da vida. Por isso, gostaria de ouvir vocês para saber qual é o mais adequado para carregar consigo essa importante missão.

Assim que o sol terminou sua fala, tempo que, se pudesse ser medido, poderia equivaler a eras e eras inteiras, os planetas começaram a conversar entre si. Logo Mercúrio, que era rápido no pensamento, disse:

- Senhor, gostaria de me candidatar a essa função. Sabe bem que, entre todos os que aqui estão, sou o mais ágil e eficiente em cumprir as tarefas que me são dadas. Se permanecesse com a vida, poderia compreendê-la mais rápido que qualquer um e cumpriria logo essa missão de entender a criação. Como estou sempre ao seu lado, bastaria um olhar seu para acompanhar a vida em seu curso e não haveria necessidade de enviar mensageiros para saber se ela está sendo bem cuidada.

Vênus foi o próximo a falar, talvez porque estivesse mais próximo e tenha ouvido as palavras de seu vizinho:

- Tem ótimos argumentos, meu amigo, mas creio que também posso ser o escolhido. Todos concordam que sou o mais belo dentre todos os astros visíveis. Também consigo apreciar e construir as coisas mais belas de todas as galáxias. Basta olhar para minhas montanhas verdes e vales tão bem acabados para perceber. Comigo, a vida seria próspera e, com certeza, de uma beleza infinita.

Nem bem Vênus terminou de falar e logo uma voz imponente se fez ouvir entre todos. Era Júpiter:

- Escolha-me senhor! Sou o mais forte e grandioso astro dentre todos aqui. Comigo, a vida estaria bem protegida e aprenderia com um guerreiro a ser indestrutível!

Diante do discurso de Júpiter, todos os outros planetas ficaram em silêncio, atordoados. Após algum tempo, uma voz fina e muito baixa falou. Precisou de algum tempo para todos saberem que se tratava de Saturno:

- Com o devido respeito por todos os presentes, creio que a vida precisa, acima de tudo, que lhe ensinem tudo o que se sabe sobre o Universo. Dessa maneira, ninguém melhor que eu, dominador das ciências possíveis e impossíveis, para ensiná-la.

Um burburinho correu entre os planetas. Ninguém ousava discutir com Saturno quando ele falava, pois até hoje não entendiam como ele havia dominado a incrível técnica que forjou os belos anéis que o coroavam como sinal da sua inteligência e perícia.

Além deles, muitos outros continuaram seus discursos. Não só os planetas falaram, mas também as luas,  que muitas eram, os cometas, que levaram eras inteiras para conseguir se fazerem entender pelo sol, já que nunca paravam em suas trajetórias e só podiam falar seus argumentos enquanto, muito rapidamente, passavam por perto do rei, e outros astros e estrelas que hoje em dia não sabemos ao certo quem eram, só que existiam por ali naquelas épocas e hoje em dia se foram para outras distâncias. Todos tinham bons argumentos para serem portadores da vida e, com certeza, qualidades não faltavam a nenhum deles.

Finalmente se seguiu um silêncio de algumas eras por ali. O Sol suspirou:

- Compreendo o que me dizem, e escutei todos os argumentos que me apresentaram. Fico feliz que tantos gostariam de serem portadores dessa tão arriscada e misteriosa missão, mas preciso de tempo para refletir. Não é com uma simples revolução que se chega a uma decisão tão complexa.

E assim o Sol ficou ali, fechado em si mesmo, a pesar tudo o que havia escutado. Como não havia outra solução que não esperar, muitas rotações se passaram e as coisas continuaram sua trajetória universo afora. Algumas, cansadas de esperar, se foram para outras partes do Universo, porque, mesmo numa era de tantas incertezas, uma das únicas verdades que existia é que espaço não faltava. Por fim, o Sol se pronunciou:

- Amigos, depois de muito refletir em minha luz, elaborei nova ideia.

Todos seus próximos logo se sobressaltaram, excitados. Quem teria sido o escolhido do Astro-rei?

- É certo que muitos de vocês fazem por merecer serem portadores da vida. Porém, antes que faça minha escolha, gostaria de ouvir alguém que, há muito está perto de mim e nada disse enquanto discutíamos. Que pensa sobre tudo isso, Terra?

A Terra era um dos astros mais próximos do Sol e não tinha fama alguma entre todos os presentes. Não era ela a maior, nem a mais rápida, bela ou inteligente dos astros conhecidos. Tanto que, até escutar seu nome pronunciado pelo Sol, achou que deveriam estar falando de outro. Envolvida em uma rotação e outra, com uma voz que pela primeira vez muitos por ali ouviam, disse:

- Nada posso opinar sobre questão tão importante, meu senhor, porque eu ainda pouco sei sobre mim. Ainda há pouco era uma bola de fogo que pelo universo cintilava, envolvida em revoluções. Mas agora nem isso sou mais. Sinto dentro de mim uma energia potente, mas que aos poucos vai se apagando. Minha superfície é incerta e tampouco tenho controle sobre ela; algumas vezes produzo uma montanha; outras vezes produzo vales profundos e irregulares. Sou inconstante e às vezes me desespero, sem saber para onde vou. As lágrimas do meu choro produzem mares e rios gigantescos, que destroem parte do trabalho que, com todo cuidado, tento construir. Como sou dessa maneira tão estranha, não posso dar garantia alguma que comigo a vida estaria a salvo, por isso não tenho razão alguma para reclamá-la.

A Terra, tão calada desde sempre, depois de falar, fez uma reverência ao Sol e voltou a fazer as suas rotações como sempre fazia.

O Sol ponderou e por fim se pronunciou:

- Acho que já tenho a resposta que procurava, assim como encontrei quem deve ser o portador da vida. Terra, você foi a escolhida.

Os astros todos pararam, incrédulos. Se essa falta de rotação alterou alguma coisa no Universo, dificilmente saberemos. Mas o certo é que, pela primeira vez por ali, as coisas, que desde sempre estiveram em movimento, ficaram por algum tempo paradas, sem acreditar. Por fim, a Terra falou:

- Por que o senhor fez essa escolha?

O Sol respondeu:

- Entendo que a vida é bastante preciosa, mas também ela é, como disse para todos vocês, imprevisível. Acho que não haveria lugar mais interessante para observá-la se desenvolver que a Terra. Juntos, poderão aprender e, ao mesmo tempo, ensinar a todos nós. Você, Terra, irá gestá-la em seu ventre e a vida, quando começar a existir, a respeitará como uma Mãe. Não será uma tarefa fácil e muitos conflitos surgirão. E também muitas questões e mistérios ficarão sem resposta. Mas só assistindo a vida se desenvolver é que talvez aprenderemos, de alguma forma, qual o mistério do Universo.

E tudo voltou a revolucionar-se novamente.

E foi assim que a Terra passou a gestar a vida.

E é assim que os mais antigos entre nós contam que começamos a existir.

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